OLHAR DE CACIMBO



... porque nenhuma visão é neutra, porque o turvo precisa ser dito, ainda que maldito, antes que se perca em escuridão.










quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Visita a Ilha do Dr. Moreau





6 de agosto


Há 3 dias em Luanda fomos ao hospital, conveniado à empresa que nos recebe, para os procedimentos padrão de recém chegados. O médico, um estrangeiro, branco, delgado e alto com gestos e expressão sérios. Nos deu pílulas. Eu andava um pouco chocada com tudo, sem contar o cansaço de recém ter chegado, e então era chegado o momento da trágica noticia sobre os perigos que nos aguardavam ao viver na África. Mecanismo de defesas acionados, fiquei desenvolvendo imaginações literárias. Se não fosse bem magro, o tal médico até poderia lembrar o próprio Marlon Brando na pele do Dr Moreau no filme ¨A ilha do Dr. Moreau¨ inspirado na obra do Wells. Ou poderia ser o próprio Wells numa foto que vi numa enciclopédia na biblioteca uma vez, careca, alto, barrigudo, estava de perfil, só lhe faltava a barriga. Imaginem, poderia estar nos testando remédios para nos modificar os genes. As pílulas, disse-nos ele que eram para malaria, para prevenir até que o próprio corpo começasse a ser picado por mosquitos africanos, mais selvagens que os brasileiros, e criasse as suas resistências. Contudo, a malária tem 4 ou 5 tipos diferentes e um deles não se tem certeza se se consegue cura mesmo com os medicamentos existentes no mercado. Tomaremos as tais pílulas de DOXYPALU, por no máximo um ano, já que é antibiótico forte, porque se formos picados e contaminados por umas dessas formas mais simples de malária já estaremos sendo medicados. Trata-se de um procedimento considerado padrão para os estrangeiros, já que somos mais vulneráveis às enfermidades que nossos corpos não conhecem, além do mais temos imunodeficiências próprias de recém chegados que acabam nos deixando mais vulneráveis ainda. A indicação é que tomemos por no mínimo 3 meses e no máximo 1 ano. No final nossos genes já estarão a nos modificar de formas humanas para outros seres. Se tivermos febre devemos correr pro hospital, pois se detectada cedo, a malária pode ser curada. Se chegarmos a nos transformar em mosquitos, pela mutação genética, então a malaria já não nos afetará, e o melhor é que poderemos voar, assim nos livramos do trânsito e do engarrafamento, das calçadas sujas e destruídas, dos motoqueiros intimidadores e já não precisaremos mais comer, poderemos viver de sangue, sangue humano. Pena que só as fêmeas, já que só os mosquitos fêmea é que picam e transmitem o protozoário da malária, os mosquitos macho acho que ficam em casa, no lago, cuidando das larvinhas de mosquitinhos. Ouvimos atentíssimos as instruções do Dr. e quando chegamos em casa começamos a tomar as bolinhas. Depois de um mês tomando o medicamento já decidimos parar. Quase por uma questão de sobrevivência. Não sei que outro animal eu estaria me tornando, talvez um mosquito mesmo, com certeza era um ser sem flora intestinal e com estomago bastante ácido. No dia da consulta tambem foi nos receitado mosquiteiros e um produto para passar neles que espanta e mata os mosquitos da malária e tambem repelentes. Os repelentes são com quinino, uma substância especial que espanta os mosquitos de malária, ou melhor, as mosquitas já que são meninas. QUININO é a mesma substância que tem na água tônica. 


_ Inclusive aqui em Angola tem uma água tônica nacional que é bem gostosa, menos doce que a shueps, se chama welwitschia. Só tem nos mercadinhos, na rua, e nos estabelecimentos comerciais menos ¨chiques¨, nos hotéis e restaurantes mais top top só shueps. Fico a pensar se pode ser ainda falta de nacionalidade. Ou não (como diria o ministro Gilberto Gil) porque tem até comercial de welwitschia cujo slogam diz ¨essa água tônica é nossa¨. Talvez seja a escolha dos clientes ¨chiques¨ que recusem a nossa água tônica, eu adorei. Welwitschia é uma planta que só existe no deserto da Namíbia e no sul de Angola, já que os dois países fazem divisa, e é considerada (segundo a wikipédia) um fóssil vivo, porque há plantas dela que vivem desde 1000 ou 2000 anos. Está ameaçada de extinção, mas aqui em Angola menos por causa do perigo das minas que faz com que as pessoas não andem muito por zonas desabitadas. Suas folhas são enormes, pordem chegar a mais de 2 metros de comprimento e seu nome é homenagem ao Dr.friedrich Welwitsch que viveu em Angola e descobriu a planta em 1860. O refrigerante foi lançado em Angola em 2006 por uma multinacional portuguesa, Refriangro, que está instalada aqui e claro que não é feito da planta rara, mas faz muita gente pensar que sim_


Ademais a malária o Dr. nos falou das serpentes e eu lá pensando no pequeno príncipe, e sabendo que no Brasil também tem serpente hora bolas é só não ir mexer com elas. E será que vivem serpentes nas welwitschias? Se o pequeno príncipe tivesse conhecido a welwitschia ao invés dos baobás... a história seria diferente. Ao fundo a ladainha do médico de que devemos lavar as mãos, lavar as frutas, as verduras, lavar lavar lavar... O pequeno príncipe afasta a cadeira para ver mais uma vez o por do sol, não consegue, o cacimbo não deixa, afasta mais um pouco, outra vez, outra vez mais, ainda não consegue. O planeta está coberto pelos braços de uma planta fóssil com nome esquisito que o menino ainda não consegue pronunciar. O carneiro está preso na caixa para não comer a planta, coitado. Para não comer o lixo, para não sujar as mãos... precisamos lavar o carneiro, será que tem água no planetinha do menino? O doutor diz que só podemos tomar água mineral, isso já sabíamos, todos sabem, afinal estamos na África, e aprendemos também que como aqui tem surtos de raiva, devemos fugir dos animais até mesmo os domésticos. Ufa! Na caixa o carneiro não irá pegar raiva. O carneiro já foi gente, tomou DOXYPALU, mas não deu certo, virou carneiro e não mosquito, então foi mandado de avião para ser abandonado no deserto, o avião caiu e o aviador deu ele ao pequeno príncipe dentro de uma caixa com furinhos para o bicho respirar. 


Na saída posto médico eu sabia que o Dr. tinha exagerado, eu sabia que não tinha compreendido tudo porque fiquei viajando, só não sabia o quanto era exagerol. Nesse dia pensei que não aguentaria. Pensei que tinha vindo pra Angola para morrer, a menos que decidisse voltar e logo. Agora já consigo estar mais relaxada, sempre que só como frutas sem casca e legumes só se tiver certeza de que bem lavados e com desinfetante. Lavo constantemente as mãos, uso repelente e muito protetor solar. Tomo agua mineral e Welwitschia e nao tomo pílulas para não virar mosquita.

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