OLHAR DE CACIMBO



... porque nenhuma visão é neutra, porque o turvo precisa ser dito, ainda que maldito, antes que se perca em escuridão.










quarta-feira, 13 de maio de 2015

o guardador do nada

O encontramos no meio do nada, na beira de uma das estradas que leva a outra parte do nada, lá pra bandas de depois de Açucareira, pro lado das antiguas plantações de cana da fabrica Tentativa.

Não conseguiamo dialogar muito com ele porque ele não tinha esse hábito, ali passava seus dias, completamente e isolado e solitário. Sua função, se entendi bem, era de guardar aquelas terras. Ele tinha uma carabina e uma pequena cabana feita com galhos de árvores coberta de plásticos que devia ser sua casa. Do lado de dentro da cabana tinha um lugar para fazer fogo e uma chaleira. 
 
Não sei como dormia, como comia, como conseguia água, como sobreviria...

Na tarde antes de partir de Angola fomos lá deixar-lhe o nosso colchão e tiramos uma fotinho dele para nossa memória.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

Tio Teté, o cantineiro caboverdiano-angolano da Açucareira (Caxito _Angola)

CANTINA é um ponto de venda, onde se vende farinha, sal, fósforo, enlatados e artigos “secos”.

O Sr. Adelino Mendes de Monteiro
mais conhecido como “tio Teté” 
era o cantineiro da cantina do
Hotel Vissapa de Açucareira no ano de 2010 quando eu morei lá.

Um senhor que despertou muito rapidamente o meu interesse por sua educação e capacidade de verbalizar o que pensava. 

Uma pessoa bastante simples e do meio popular, porém de algum modo mais expressivo que outros e mais aberto para falar e contar Angola, a guerra, a vida e a morte. 

Nas tantas conversas que tivemos, ele me contou que não era Angolano de nacimento, veio de Cabo Verde em 1974 em busca de trabalho e nunca voltou pra sua ilha natal (que se não me engana a memoria era a Ilha do Sal). 

Depois de partir nunca mais viu ninguém de sua família e inclusive não sabia quantos deles ainda estariam vivos. 
Morava na mesma casa desde que chegou: uma antiga residência destinada aos funcionários da empresa TENTATIVA, a açucareira que funcionava ali na época em que Angola era colonia e que deu nome à localidade.

Ao falar do passado, afirmou que era um dos poucos de sua idade ali porque a guerra tinha matado quase todos. Contou que tinha visto as duas guerras e o fim delas; que tinha visto como tudo foi mudando. Como ele não era português, não foi embora e como não era angolano não foi pra guerra.

Na sua opinião _“o tempo bom aqui foi o tempo dos brancos, tinha comida, tinha roupa, tinha fábrica de tecidos e uma fábrica de cerâmicas ali Sossa.” 


Para ele os bons tempos tinham passado e ele sabia que iria morrer em Angola, do mesmo jeito que tudo o que ele viu e viveu na juventude teriam morrido.

Quando lhe perguntei se sentia falta da sua terra e porque não viajava até la, ele respondeu que tinha muitas saudades do Cabo Verde, mas que não podia pagar uma passagem, que não tinha férias no trabalho de cantineiro, de domingo a domingo, e que não poderia chegar lá com as mãos vazias.

A afirmação me intrigou, então ele explicou que não poderia chegar lá sem nada.
Depois de tantos anos, tinha que levar um bom presente para a família, tinha que chegar melhor de vida do que quando saiu. E eu soube porque, pois....
 
exilar-se em um país que não se nasceu só tem sentido quando a vida que se tem é muito melhor que a vida que se teria na própria pátria.


Sobre sua vida en Angola... me explicou que depois da guerra perdeu o trabalho na Açucareira tentativaele e que sustentava toda a família, sua mulher e filhas angolanas con o fruto do trabalho de cantineiro. 

Sobre a fábricade ele afirmava sentir tristeza em ver o lugar como estava. Contou que os governos angolanos teriam deixado aquilo acontecer porque não sabiam produzir o açúcar. Os cubanos teriam mantido a fábrica durante sua estada em Angola, mantendo a produção durante um tempo. "eles eram bons, mesmo melhores que os portugueses", afirmou.
Tio Teté e eu, num daqueles dias de conversa e cacimbo

Para mim o mais intrigante no Tio Teté era que ele foi o único estrangeiro inserido que conheci. Um homen que abraçou a Angola como pátria, mas que nunca deixou de “criticar” a dura realidade que confrontava diariamente, que lhe tirava a vontade de sorrir, mas que continuava a lhe dar motivo para trabalhar todos os dias. 

Eu nunca mais tive noticias dele, não sei se continua vivo, nem se ainda trabalha lá. Mas nesse dia 1 de maio (dia do trabalho) lembrei dele, e foi por essa "amizade" de alguns meses que voltei aqui, escrever sobre ele e sobre o carinho que tenho ao lembrar do meu amigo Cantineiro.