OLHAR DE CACIMBO



... porque nenhuma visão é neutra, porque o turvo precisa ser dito, ainda que maldito, antes que se perca em escuridão.










sábado, 19 de setembro de 2009

Prólogo (leia antes de explorar o blog)



Aterrissei em Luanda, capital da Angola no dia 4 de agosto de 2009. Cheguei cedinho e para ficar por um ano, talvez mais. Não vim com trabalho arranjado como fazem muitos, estou com meu companheiro que pra cá foi recrutado. Pisei firme a primeira vez na terra mãe África nesse país jovem chamado Angola, que com o Brasil traz a irmandade da língua e de alguns costumes herdados dos colonizadores e outros incorporados nos porões dos navios negreiros que cruzaram o oceano e, depois, nas senzalas e nos terreiros festivos e alegres. Cheguei com os olhos atentos e os ouvidos alerta, empolgada com a nova terra, a nova vida e as novas experiências . Logo que fui sentindo e vivenciando meus primeiros dias na capital do país quis escrever, mas não conseguia. Absolutamente não sabia o que dizer. Era como se os olhos e os demais sentidos não conseguissem sintetizar em fala o que eu vivia. O que me silenciava era o mesmo impulso que me fazia quase perder o ar de tanta vontade de gritar. Gritar para que todos pudessem sentir o cheiro das ruas, as cores das roupas, a voz das pessoas, o canto das vendedoras ambulantes de peixe, o amontoado de carros, as filas, o pó das construções, a desumanidade da pobreza, a excentricidade dos ricos, a separação dos estrangeiros, a quantidade de lixo, a escassez da água, a grandiosidade dos baobás, ...
A tentativa incessante de compreender porquê se faz uma guerra e o que acontece quando se sai dela me tornavam mais curiosa com a vida e com o país, comecei ler sobre tudo, mas absolutamente não me saía uma frase escrita. Gostaria de poder dizer o calor que tem o sol coberto pelo cacimbo; de descrever a cara das pessoas para que pudessem me ajudar a entender esse povo; de repetir algumas frases incompreensíveis no meu português brasileiro para que pudéssemos procurar os significado; de dizer a tranquilidade das crianças dormindo pelas calçadas amarradas nas mães em panos coloridos rodeadas pelas moscas; de cantar as músicas ritmadas dançantes, cujas letras pouco criativas giram sempre em torno do mesmo tema: relações amorosas heterossexuais. Gostaria de poder levar um pouquinho do tudo Angola pros meus amigos e queria poder trazê-los para esse meu novo mundo. Agora tento, sei que é parcial, que é subjetivo o que ofereço, mas já não consigo deixar de compartilhar.
Meu olhar é de cacimbo foi pensado justamente para que tudo que digo aqui não seja entendido como a verdade sobre Angola, ou sobre outra nação, região geográfica do mundo ou idéias que eu venha falar, mas para ficar claro que são impressões de quem olha por um prisma. A lente de cacimbo me pareceu ser uma metáfora adequada,já que a palavra cacimbo, de origem nas línguas africanas e tipicamente uma palavra conhecida em Angola, representa o ar frio e a neblina que encobre o céu (e o sol) nos meses de junho a setembro no país.
Espero que minhas experiências e meu olhar possam ser motivo de diálogo entre meus amigos e eu, mas tambem entre todos que conhecem ou querem conhecer Angola.

3 comentários:

  1. linda, que delícia poder sentir um pouco do que vc está vivendo. A minha imaginação está a mil com as suas palavras, fui imaginando cada pedaço desse grande pedaço onde vc se encontra.
    Pelas suas palavras, pude não só sentir um tiquinho de Angola, mas matar um tiquinho da saudade que tenho da sua sensibilidade, da sua inteligência e da maneira INCRIVEL como vc consegue expressar e colocar em palavras aquilo que vê e sente.
    vc é incrivel
    amo vc
    bjo
    bru

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  2. Ai, que li tudo de trás pra frente e nesse final chorei de tanta vida que escorre pelas mãos da gente, e nem vemos, sentimos... Viva, Vivi, essa vida poeirenta e colorida... Que seja a melhor que der..

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  3. Acho que a destreza com as palavras dá um poder inigualável: consegue teleportar territórios inteiros às mentes dos distantes. Mas, pelo mesmo sentido, tambem aproxima essas pessoas que te leem. Não é essa a vontade?: Enviar tudo e trazer todos? Acho que está conseguindo sim. =)

    Te amo guria. Continua com isso. Com 50 anos lerá novamente e verá a mudança que fez e que teve. Tudo é aprendizado, como você mesmo fraseava o Nietzsche: O que não me mata me fortalece.

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